sábado, 18 de abril de 2015

Carta aberta de Mia Couto ao Presidente da África do Sul







Carta aberta do
Presidente da “Fundação Fernando Leite Couto”,
Mia Couto
Contra o genocídio de moçambicanos na África do Sul
Exmo. Senhor Presidente Jacob Zuma
Lembramo-nos de si em Maputo, nos anos oitenta, nesse tempo que passou como refugiado político em Moçambique. Frequentes vezes nos cruzámos na Avenida Julius Nyerere e saudávamo-nos com casual simpatia de vizinhos. Imaginei muitas vezes os temores que o senhor deveria sentir, na sua condição de perseguido pelo regime do apartheid. Imaginei os pesadelos que atravessaram as suas noites ao pensar nas emboscadas que congeminavam contra si e contra os seus companheiros de luta. Não me recordo, porém, de o ter visto com guarda costas. Na verdade, éramos nós, os moçambicanos, que servíamos de seu guarda costas. Durante anos, demos-lhe mais do que um refúgio. Oferecemos-lhe uma casa e demos-lhe segurança à custa da nossa própria segurança. É impossível que se tenha esquecido desta generosidade.
Nós não a esquecemos. Talvez mais do que qualquer outra nação vizinha, Moçambique pagou caro esse apoio que demos à  libertação da África do Sul. A frágil economia moçambicana foi golpeada. O nosso território foi invadido e bombardeado. Morreram moçambicanos em defesa dos seus irmãos do outro lado da fronteira. É que para nós, senhor Presidente, não havia fronteira, não havia nacionalidade. Éramos, uns e outros, irmãos de uma mesma causa e quando tombou o apartheid a nossa festa foi a mesma, de um e de outro lado da fronteira.



Durante séculos, emigrantes moçambicanos, mineiros e camponeses, trabalharam na vizinha África do Sul em condições que pouco se distinguiam da escravatura. Esses trabalhadores ajudaram a construir a economia sul-africana. Não há riqueza do seu país que não tenha o contributo dos que hoje são martirizados.
Por todas estas razões, não é possível imaginar o que se está a passar no seu país. Não é possível imaginar que esses mesmos irmãos sul-africanos nos tenham escolhido como alvo de ódio e perseguição. Não é possível que moçambicanos sejam perseguidos nas ruas da África do Sul com a mesma crueldade que os polícias do apartheid perseguiram os combatentes pela liberdade, dentro e fora de Moçambique. O pesadelo que vivemos é mais grave do que aquele que o visitava a si quando era perseguido político. Porque o senhor era vítima de uma escolha, de um ideal que abraçou. Mas os que hoje são perseguidos no seu país são culpados apenas de serem de outra nacionalidade. O seu único crime é serem moçambicanos. O seu único delito é não serem sul-africanos.

Senhor Presidente
A xenofobia que se manifesta hoje na África do Sul não é apenas um atentado bárbaro e cobarde contra os “outros”. É uma agressão contra a própria África do Sul. É um atentado contra a “Rainbow Nation” que os sul-africanos orgulhosamente proclamaram há uma dezena de anos. Alguns sul-africanos estão a manchar o nome da sua pátria. Estão a atacar o sentimento de gratidão e solidariedade entre as nações e os povos. É triste que o seu país seja hoje notícia em todo o mundo por tão desumanas razões.
É certo que medidas estão a ser tomadas. Mas elas mostram-se insuficientes e, sobretudo, pecam por serem tardias. Os governantes sul-africanos podem argumentar tudo menos que estas manifestações os tomou se surpresa. Deixou-se, mais uma vez, que tudo se repetisse. Assistiu-se com impunidade a vozes que disseminavam o ódio. É por isso que nos juntamos à indignação dos nossos compatriotas moçambicanos e lhe pedimos: ponha imediatamente cobro a esta situação que é um fogo que se pode alastrar a toda a região, com sentimentos de vingança a serem criados para além das suas fronteiras. São precisas medidas duras, imediatas e totais que podem incluir a mobilização de forças do exército. Afinal, é a própria África do Sul que está a ser atacada. O Senhor Presidente sabe, melhor do que nós, que ações policiais podem conter este crime mas, no contexto atual, é preciso tomar outras medidas de prevenção. Para que nunca mais se repitam estes criminosos eventos.

Para isso urge tomar medidas numa outra dimensão, medidas que funcionam a longo prazo. São urgentes medidas de educação cívica, de exaltação de um passado recente em que estivemos tão próximos. É preciso recriar os sentimentos solidários entre os nossos povos e resgatar a memória de um tempo de lutas partilhadas. Como artistas e fazedores de cultura e de valores sociais, estamos disponíveis  para de enfrentar juntos com artistas sul-africanos este novo desafio, unindo-nos às inúmeras manifestações de repúdio que nascem na sociedade sul-africana. Podemos ainda reverter esta dor e esta vergonha em algo que traduza a nobreza e dignidade dos nossos povos e das nossas nações. Como artistas e escritores queremos declarar a nossa disponibilidade para apoiar a construção de uma vizinhança que não nasce da geografia mas de um parentesco que é da alma comum e da história partilhada.
Maputo, 17 de Abril de 2015

Mia Couto


sábado, 11 de abril de 2015

...a minha Zézinha...







...Zézinha…
Era minha Mãe.
Assim…simplesmente… era  a Zézinha…
Assim…nesta tarde de Sábado e com um café por companhia resolvi dizer algo que fez a Zézin…hoje a estrela mais brilhante e a quem eu peço proteção antes de adormecer…


Zézinha viveu em Moçambique…terra onde nasci…onde ela era feliz…a Zezinha  fez algo que hoje teria outra atenção por esta sociedade dita moderna. Pois então o que fazia?



A Zézinha e mais um grupo de Senhoras amigas dedicaram-se ao voluntariado durante anos.
Todas as semanas, em dias pré-determinados deslocavam-se a pé, aos bairros mais pobres e degradantes da cidade de Nampula para visitar as dezenas e dezenas de homens e mulheres que sofriam de lepra…doença terrivel, dramática e mortal…não tinham qualquer espécie de tratamento ambulatório…conversavam com elas…tentavam terminar com o silêncio doloroso e habitual nestes doentes…pobres em último grau…tratavam o melhor que podiam e sabiam as suas feridas, desinfetando e aplicando alguns medicamentos que possuíam…todas as semanas havia um dia dedicado à assistência aos leprosos…e nesses dias, a Zézinha chegava a casa sempre muito impressionada com as experiências que tinha vivido...por vezes lá me contava algumas experiencias dolorosas que tinha acabado de viver…



…mas a Zezinha fazia mais…trabalho de voluntariado deste Grupo extraordinário de Senhoras fazia mais…era…simplesmente, todas as semanas tinham um dia destinado a visitar o Hospital Militar de Nampula – Moçambique. Neste Hospital situado na Cidade onde estava sediado o Quartel General do Exército Português em Moçambique era o primeiro destino de todos os feridos em combate. 

Pois a Zézinha e as suas amigas visitavam naquele dia escolhido os feridos em combate para lhes dar alento e uma palavra amiga…rapazes de tenra idade…alguns sem pernas ou braços…outros cegos…soldados do exército português que por vezes tinham como vizinhos de enfermaria outros soldados guerrilheiros da Frelimo. Seus inimigos de combate…

O que mais emocionava a Zezinha era precisamente o facto de soldados adversários viverem lado a lado…feridos…e por vezes apoiando-se mutuamente…a Zézinha chegava a casa sempre muito triste e incomodada…até porque sabia que o dia que o seu filho iria pegar em armas se aproximava assustadoramente.


Mas o trabalho de voluntariado da minha Zézinha não ficava por aqui.


…a Zézinha e suas amigas visitavam os já citados bairros periféricos…degradados, deteriorados e corrompidos…bairros onde a delinquência e a prostituição conviviam diariamente…faziam esta visita para quê?...pois para visitarem as mulheres que se dedicavam à prostituição para conseguirem sobreviver e/ou darem de comer aos seus filhos...Da parte da tarde, lá ia a Zézinha e o seu lindo grupo de Senhoras prestar o seu apoio, ou seus conselhos e indicando até  produtos de higienização.


Este era o trabalho de voluntariado que a Zézinha se dedicava.
…emociona-me, enche-me de orgulho e admiração todo o trabalho que a minha Zézinha prestava em regime total  de voluntariado com o seu Grupo extraordinário de Senhoras…

…a minha homenagem simples…simples como eram todas estas Senhoras lindas…
…esta era a minha Zézinha…simplesmente Zézinha…


…neste momento eu penso que…a  frase que eu mais gostaria de ouvir dos meus filhos seria “Eu te amo, Pai”…eu…muito poucas vezes disse aos meus Pais esta frase…eu te amo Pai e eu te amo Mãe…que pena…a Zézinha nos últimos anos da sua vida…por vezes questionava-me… “Filho…tu gostas de mim?”…percebi então a minha falta ou defeito …não transmitir por palavras…de forma viva…o quanto amava aquele ser divino…o remorso que sinto e me persegue por não ter dito “eu te amo Pai”…


…eu te amo Mãe…eu te amo Pai…






João Neves