quinta-feira, 5 de agosto de 2010

VOZ DA SELVA

Rondava o ano de 1968/69
Por imposição de trabalho da Serração Mecânica, com sede em Lourenço Marques, meu pai teve que mudar-se com armas e bagagem para um acampamento no meio do nada em plena selva Moçambicana.
Nós (eu, meu irmão e minha mãe), sem termos voto na matéria, tivemos que o acompanhar…
Hoje, recordando o passado, sou feliz e agradeço a meu pai, por ter vivido de perto e na primeira pessoa, acontecimentos tão enriquecedores que só aquela África que nós tanto amamos, nos proporcionou.
Escolhi esta historiazinha, porque é uma sequência de vários acontecimentos que se desenrolaram na mesma altura:
Se bem me lembro, chegamos ao Litane, numa manhã cinzenta e orvalhada pelo cacimbo da noite.
O cenário pareceu-me tão desolador que ainda hoje o comparo com um campo de guerra depois de uma batalha…
Uma clareira, a centenas de quilómetros da povoação mais próxima, onde havia sido desbravada alguma floresta para assim poderem instalar um acampamento. Nele constava uma serração de madeiras, que era o posto de trabalho do meu pai, uma pequena casinha de madeira, pintada de cinzento com o telhado de chapa galvanizada com uma enorme varanda, que seria a nossa casa, uma cantina que era onde os empregados se abasteciam de tudo o que precisavam, desde alguns alimentos, roupa, calçado, etc.
Nas zonas circundantes, por entre as árvores e extenso matagal que nos rodeava, viviam os negros, empregados da serração, que ali se deslocavam todos os dias para exercerem as suas funções e onde meu pai era o encarregado…
As noites silenciosas de África eram únicas, apenas interrompidas pelo coaxar das rãs e pelo pipilar das aves nocturnas.
Nós gostávamos de nos deitarmos nas esteiras no chão, tendo o céu estrelado como tecto e ouvíamos a VOZ DA SELVA, uma emissora Sul-africana, proibida, mas naquele fim de mundo, nada era proibido!
As noites mais animadas eram aquelas em que o meu pai ia à caça e nos levava, por vezes, só regressávamos de manhã, pois perdíamo-nos, já que os guias que levávamos embebedavam-se e esqueciam os caminhos…
No dia seguinte a uma caçada, havia sempre festa no acampamento, pois o meu pai distribuía a carne pelos empregados.
O acontecimento que mais me marcou naquele ano de 69 foi a morte do meu cão “Paulino”pois teve uma morte horrível e isso quase que nos atingiu fisicamente…mas passo a explicar:
Uma manhã, surgiu lá no acampamento um cão enorme com um comportamento muito estranho.
O Mafaiate (nosso empregado) quando se apercebeu foi logo chamar o “patrão” (meu pai), mas quando ele lá chegou já o dito cão tinha feito estragos irreparáveis:
Surgiu na minha frente, mas tentou atirar-se a minha mãe, que entretanto pegara numa vassoura, felizmente, para nós, o “Paulino”desviou a atenção do dito cão para ele e, azar do meu cãozinho, foi o escolhido para ser uma bola, debaixo das patas enormes daquela fera enraivecida.
Quando o meu pai chegou, já o dito cujo tinha abalado.
O “Paulino”estava todo mordido mas vivo, embora bastante combalido.
Meu pai tratou dele e quando melhorou, prendeu-o ao fundo da machamba, pois achava que o cão tinha sido contaminado, estava com raiva e ia morrer….
Fiquei chocadíssima!!!A machamba era cercada por tábuas muito altas, para proteger as hortas dos animais selvagens, que por onde passavam destruíam tudo.
Sempre que eu podia ia pelo lado de fora da machamba e espreitava por entre as tábuas para ver o meu bichinho, não via nada de anormal, apenas via tristeza nos olhos dele e achava que era por estar preso. Meu pai achando que se tinha enganado no prognóstico, resolveu soltá-lo passadas algumas semanas, já que ele aparentava estar muito bem, mas apesar de não nos fazer mal, ele atirava-se aos restantes cães, coisa que anteriormente não acontecia….
Voltou a ser preso e pouco depois teve vários ataques de fúria contra o Mafaiate, pois era ele que o tratava, deixou de comer e quando o fui espreitar pela ultima vez, olhou-me com ódio, ou talvez com loucura, sim…hoje acho que dos olhos dele emanava loucura!!
Com o cão morto, havia a incerteza se também estávamos contaminados pois brincávamos com ele…
Nessa mesma manhã com toda a urgência possível, meu pai mandou preparar o Land Rover e partimos rumo a Maoel, o acampamento mais próximo que de nós se encontrava…
Mas…e porque, todos os dias, tínhamos um camião que se deslocava de Maoel ao Litane a fim de transportar as madeiras que meu pai preparava na serração e que depois eram exportadas para a África do Sul, e que também, nos abastecia de tudo o que era necessário, o motorista e seu ajudante, já havia alguns dias que se queixavam que era complicado passar, pois andava um búfalo ferido que os esperava no caminho e por vezes os fazia perder muito tempo, uma vez que o búfalo era teimoso e não se desviava do trilho por onde a Izuzu tinha que passar.
Nessa manhã e temendo o encontro com o búfalo, meu pai que era um amante inveterado da caça grossa e como sempre fazia, quando nos deslocávamos para algum lado no mato, metemo-nos os quatro dentro da cabine do jipe e com uma arma de caça grossa ( carabina calibre 375) em cima das nossas pernas, que normalmente ia dentro do respectivo saco, mas daquela vez e por ter receio de não ter tempo, se o búfalo aparecesse até ia fora do saco e pronta a disparar…
E o inevitável aconteceu…na zona onde o motorista dizia que o búfalo aparecia, meu pai afrouxou a marcha do jipe e todos nós apurámos a visão na esperança de o vermos e a certa altura minha mãe diz:

-Estou a ver qualquer coisa a mexer junto daquela árvore,!!


Meu pai que, repentinamente, também se apercebeu, saiu porta fora do jipe mesmo com ele em marcha lenta e até se esqueceu de o parar, por sorte nossa, o trilho era tão fundo que o jipe acabou por parar sem sair da picada.
Meu pai mandou dois tiros para aquele vulto enorme por entre as árvores, esperou uns segundos e avançou mais um pouco com a arma em posição de fazer fogo novamente caso fosse preciso, mas perdeu de vista o tal vulto e temendo ir mais em frente e já que o nosso tempo urgia, voltou para junto de nós, pegou numa catana e foi dar umas catanadas na árvore onde o búfalo estivera encostado, para marcar o sitio, pois na nossa volta era propósito do meu pai procurar o bicho
Seguimos o nosso destino até Maoel onde chegamos já tarde avançada
Dirigimo-nos a casa do Sr. Gonçalves, a quem contamos o sucedido e depois de comermos algo partimos rumo a Manjacaze, onde se encontrava o hospital mais próximo.
Não recordo bem, mas tenho uma vaga ideia de que fomos logo atendidos com toda a urgência e começamos por levar uma injecção na barriga, cada um, e isso continuaria dos dias seguintes durante uma semana. Depois de medicados, meu pai resolve voltar para Maoel, onde esperávamos ir jantar e pernoitar, mas o jipe depois de algumas horas de caminhada resolve pregar uma partida e quedou-se num sítio onde não se via viva alma e ali tivémos que passar a noite os quatro dentro da cabine do jipe e por sorte, meu pai à saída do Litane disse para minha mãe pôr mantas no jipe pois nunca se sabia o que nos esperava e bom jeito nos fizeram…

Ao romper da madrugada, passaram uns franceses que pararam e nos ofereceram café e bolos, logo de seguida passou um padeiro que ia fazer a distribuição do pão, porque afinal de contas até nem estávamos muito longe da povoação Álvaro de Castro. Meu pai aproveitou a boleia do padeiro e foi ver se arranjava um mecânico para arranjar o jipe.
Passado algum tempo regressou com outro jipe que “chovou” o nosso até á oficina do mecânico e enquanto que se arranjava o jipe fomos almoçar a casa do administrador de Álvaro de Castro que por coincidência o meu pai já conhecia e que já não se viam havia muitos anos.
Depois do jipe arranjado, retornamos para Maoel, isto numa sexta-feira de tarde, onde jantámos e pernoitámos em casa do Sr. Gonçalves.
No sábado de manhã e depois de termos levado outra dose na barriga, regressámos ao Litane com as restantes injecções onde o enfermeiro de Maoel iria todos os dias dar-nos as que faltavam.
Quando de novo passamos no sítio onde o meu pai tinha dado os tiros ao búfalo, meu pai parou o jipe e inspeccionou o local, mas não se sentindo muito á vontade achou por bem continuar-mos para o Litane e então no Domingo manhã cedo reuniu uns quantos homens e munidos de catanas e alguns cães partiram ao encontro do dito búfalo.
Ao fim da manhã o meu pai estava de volta com o bicho e ainda quente pois tinha morrido naquela manhã.
Foi uma grande festa no acampamento, pois a carne foi toda distribuída pelos empregados da firma.
Esta, entre outras histórias, fizeram a história do meu percurso por aquela terra mágica que jamais esqueceremos e quem nasceu ou viveu e passou por situações idênticas, sabe bem do que falo…
Que todas as recordações da nossa África nos façam felizes pois tivemos um passado rico de experiências, nem todas boas é certo, mas vivemos um mundo de aventuras múltiplas, temos um passado digno de ser recordado, porque afinal,

Lá…

...VIVEMOS !!!

...e não apenas… PASSAMOS PELA VIDA!!!


A todos um bem-haja.



...DEDICO ESTA NARRATIVA AO MEU PAI
RECENTEMENTE FALECIDO...


                                    Maria Vieira