quarta-feira, 16 de setembro de 2015

MACACHULA


Existem situações incríveis que nos deixam a pensar…
Há 2 anos atrás ouvi falar muito de um oftalmologista e resolvi procura-lo na esperança de um milagre…
Era um dia de inverno e chovia tanto! Lembro que entrei no consultório já de noite.
Quando chamaram pelo meu nome, fui ter com o médico do qual ouvia dizer maravilhas sobre operações á vista
Um cinquentão de cabelos brancos, charmosíssimo, bem-falante, e de uma simpatia extrema que me deixou encantada, mas também super desiludida com o prognóstico que me deu, mas isso é outra história…
Fui para casa derrotada, desiludida, mas com uma sensação incrível de familiarização com o rosto bonito e sorridente do médico.

Nos dias seguintes, aquilo não me saía da ideia e comecei a ligar os pontos: O nome, o ser de Moçambique (que já nem lembro porquê, essa conversa veio á tona) …tinha que ser ele!
O mundo é uma aldeia e existem coincidências incríveis!
E…quando voltei ao consultório, não resisti e tive que perguntar:
- O senhor Dtor não é o João Paulo que vivia na Matola e costumava ir para casa da “família Oliastro”?
Olhou-me de alto a baixo antes de responder:
- Sou…
- Eu sou a vizinha da frente…
O rosto dele iluminou-se mais ainda se possível e apertou-me num abraço alegre e com uma satisfação tão grande que me contagiou e de repente estávamos naquela época e recordamos tantas coisas! Sobretudo as noitadas em casa da “família Oliastro”, naquele tempo da guerra em que nos refugiávamos todos em casa do meu vizinho da frente, porque a casa tinha um esconderijo secrecto no sótão que usaríamos caso fosse preciso…
Os adultos munidos de armas, ficavam de vigia e nós (a malta nova), passávamos o tempo jogando cartas e conversa fora até adormecer-mos…
Inevitavelmente tivemos que falar dos nossos amigos, no fundo eu tinha uma certa esperança que ele me conseguisse dar algumas notícias sobre eles, mas nada de nada!
Estes acasos da vida por vezes desencadeiam lembranças que julgamos adormecidas para sempre no cérebro. Acontecimentos de vida que nos levaram a perder os nossos amigos de infância e adolescência e até os nossos pertences que eram parte integrante de todos nós e que ficaram para sempre perdidos na história de todas as nossas vidas!
Penso que estávamos em 1974…
Interiorizo o meu pensamento e volto a viver aqueles momentos que tinha jurado esquecer definitivamente, pois não gosto de recordações ruins, essas eu procuro bloquear no meu cérebro…
Mas porque África, quer queira-mos, quer não, mesmo a distâncias milenares, está sempre presente nas nossas vidas, já que as lembranças são uma constante em cada dia mais quente, em cada semelhante de pele cor de ébano que por nós passa, em cada supermercado que vende frutas tropicais e outros artigos. Em cada palavra, nome de certos utensílios, que por força do hábito, jamais deixaremos de utilizar. África mesmo longe faz parte do quotidiano de cada um de nós, que de lá veio…
A cidade de Lourenço Marques começava a dar indícios que tudo começava a despencar e brevemente estaria a ferro e fogo, cabia a cada um tentar salvar a pele, já que no meio de todo aquele caus, era a única coisa que importava.
Enquanto uns tentavam passar a fronteira para a Africa do Sul apenas com a roupa que tinham no corpo, e outros eram chacinados selvaticamente, havia ainda os que tentavam a sorte de conseguirem embarcar no primeiro avião que os trouxesse a porto seguro, neste caso a Metrópole!
Meu pai, teimoso e com as suas ideias mirabolantes, sentindo-se um “Tarzan rei na selva “já que era lá que se sentia bem e achava que lá estaríamos protegidos de todo aquele inferno, optou por nos fazer largar o conforto da nossa casa da Matola e rapidamente, antes que se fizesse tarde, metemo-nos ao caminho…
Decorridas já algumas 12 horas em que viajávamos por uma estrada interminável, o calor amolecia-nos, a roupa colava ao corpo transpirado, os pneus do jipe deixavam o rasto no alcatrão derretido pelo calor e o nosso destino, que só o meu pai conhecia, nunca mais chegava!
Foi uma viagem para esquecer, tal o desânimo, o desespero, a insatisfação de termos que suportar tudo aquilo que aos olhos do meu pai era a coisa mais natural do mundo, mas que para nós era a entrada para o inferno.


Há muito que havíamos saído da estrada de alcatrão e o jipe rodava lenta e cautelosamente por uma picada obrigando-nos a embrenharmo-nos mais e mais no coração da selva
Tinha perdido a noção de quanto tempo já havia passado, quando se nos deparou uma pequena aldeia indígena.
Logo fomos cercados por olhos escuros e curiosos, principalmente dos mufanas que davam mostras de nunca terem visto um ser humano de outra cor.
Meu pai falou com uns quantos homens em landim e de seguida continuamos por aquela densa selva sem trilho á vista, apenas seguiam alguns homens á frente que cortavam a ramagem das árvores e tentavam alargar uma clareira por onde o jipe pudesse passar…
Algum tempo depois, meu pai parou o jipe, mandou-nos sair, e encaminhou-nos para a beira de uma vala enorme, que em épocas de chuva seria um ribeiro, mas que naquela altura estava completamente seco e coberto de plantas verdejantes.
Pacientemente e por ordem dele, ficamos a aguardar, nem nós sabíamos o quê, mas aos poucos íamos percebendo o desenrolar da situação…
Entretanto começam a chegar mais homens que descarregam o jipe.
Convém salientar que íamos munidos de tudo o que era necessário para uma estadia prolongada e o mais confortável possível por aquelas paragens
Foram cortadas varias árvores de pequeno porte, mas muito fraudulentas e com elas cobriram o jipe, de maneira que se confundisse com a restante selva de uma densidade abismal
E então começou a nossa peregrinação a pé…
Alguns homens continuavam a abrir caminho com as catanas. Eu, meu irmão e minha mãe íamos no meio, em fila indiana, o meu pai logo atrás com uma arma na mão, não fosse aparecer alguma fera de repente, e os restantes homens atrás carregando todos os nossos pertences!
Não sei quanto tempo caminhamos, mas foi bem á vontade umas duas horas
Por fim o nosso destino…
O acampamento do “Macachula”, um negro forte e guerreiro que sempre acompanhava o meu pai pelo mato, ora em caçadas, ora em insistentes procuras de madeiras exóticas para o meu pai exportar para a África do Sul
Um acampamento com uma única palhota, um enorme cajueiro, uma mesa e cadeiras debaixo do cajueiro, por perto o típico fogão africano, que consistia numa fogueira com três pedras formando um triangulo, que serviam de base ás panelas onde cozinhavam os alimentos.
Foram colocados 2 colchões em cima das esteiras, junto do pé do cajueiro, que seriam as camas do meu pai e meu irmão.
A mim e minha mãe, foi-nos destinado a palhota como quarto…
A minha vista abarcou o horizonte possível de enxergar e foi-me dado observar por entre o matagal que estávamos junto a um rio de extenso caudal, mas que por ser época seca apenas corriam uns escassos fios, nuns lados mais largos, noutros mais estreitos, de água cristalina…
E, enquanto a minha mãe, (por gestos e tendo quando necessário o meu pai como interprete) e as mulheres do “Macachula” tentavam organizar a nossa estadia, corri a procurar o meu bikini e juntamente com o meu irmão rolamos por uma encosta abaixo desembocando no rio…
Por ventura nos lembramos dos crocodilos que poderiam ser os donos e senhores daquelas águas e em qualquer local poderiam estar á espreita de alguma presa fácil?!
Não!!
Não lembramos de nada disso, apenas aquela água que corria suavemente sem destino, nos convidava a entrar nela e foi divinal…
Podemos finalmente refrescar-nos e deliciarmo-nos, pois com aquela água ali á mão todo o resto era mais fácil de suportar, mas n demorou muito que n ouvíssemos o meu pai aos berros e a fazer sinais para que saíssemos dali rapidamente
Os crocodilos!
Ai os crocodilos!

Eu cá n vi nada…
Nem o meu irmão, mas corremos a bom correr para junto de meu pai que n largava a arma…
Fomos terminantemente proibidos de voltar para o rio.
“E agora que vamos fazer aqui neste fim de mundo sem nada de nada?”
O nosso velho rádio de pilhas era o meu companheiro, assim como o meu caderninho onde escrevia como se falasse com uma amiga imaginária…
Á noite acendia-se o petromax e á roda da fogueira víamos e ouvíamos as danças e cantorias das mulheres e filharada do “Macachula”, contarem as suas histórias que meu pai nos traduzia.
Ao longe, muito ao longe, via-mos os clarões das queimadas nas planícies, que se vislumbravam com mais intensidade durante a noite.
Logo pela manhã, as mulheres do “Macachula”, com as latas vazias á cabeça e os filhos nas costas, presos pelas capulanas, faziam as suas peregrinações a caminho de alguma nascente algures e traziam água para o acampamento.
Meu irmão inspecionando cuidadosamente a beira do rio, conseguiu descobrir um local onde poderia pescar e assim passava horas a pescar e por incrível que parecesse havia sempre uns camarõezinhos para o jantar, tal era a fartura dos ditos cujos!
O único conforto que sentia era á noite quando, ao lusco-fusco, depois dos banhos improvisados entre o matagal numa grande bacia, minha mãe e eu nos íamos deitar nos lençóis brancos e macios que cheiravam a saudade da nossa casa da Matola.
Numa dessas noites quentes de céu estrelado, tendo como música de fundo o piar das aves noturnas e o coaxar das rãs no rio e o petromax dava uma ajuda á pouca claridade da lua, eu preparava-me para mais uma noite na palhota…
Já lá dentro e disposta a deitar-me lembrei-me que não tinha dado o meu beijo de boa noite ao meu pai como era de praxe. Levantei-me e abri a improvisada porta de madeira cheia de gretas, por onde entrava o ar que circulava dentro da palhota, mas um enorme baque no chão fez-me recuar e dar um grito, o “Macachula” de catana na mão, como um guardião, sempre espreitando o perigo, correu para a entrada da palhota e como quem corta cebola em cima de uma tabua, deu umas valentes catanadas numa cobra enorme que estava na porta e quando eu a abri, caio no chão. Ainda hoje me arrepio só de pensar que durante a noite poderia ter um encontro imediato com aquela horrível criatura.
Fiquei em choque e naquela noite não dormimos dentro da palhota
As notícias iam chegando pelo rádio aquele fim de mundo e só passados uns 15 dias meu pai resolveu que era chegada a hora de retornarmos para a civilização
A guerra é tramada, é bem pior que todo o desconforto que passamos, bem pior que qualquer selva cheia de perigos, era o que íamos percebendo á medida que nos aproximávamos de novo de Lourenço Marques…
Casas queimadas que ainda fumegavam, autocarros cheios de gente carbonizada, pessoas errando sem destino…
A entrada na minha rua fez-se em silêncio, a própria rua era um silêncio de morte, deserta, de casas com portas abertas, desocupadas, pois os meus vizinhos, na ansia de quererem fugir, deixaram tudo para trás. Apenas o nosso vizinho da frente e já de malas feitas também, ainda restava, pois a família já tinha passado toda para a África do Sul. Foi aí que perdi o rasto aos meus amigos…


A nossa casa continuava ali impecável á nossa espera e foi como entrar num santuário que nos resguardaria de todos os perigos. É com imensas saudades que recordo a minha casa grande, muito grande, com enormes janelas, já naquele tempo com grades, todas as janelas de todas as casas tinham grades. A porta da “copa” com duas portas, típico costume em países tropicais. O meu quintal era grande, com muitas árvores de frutos. Ao fundo do quintal era a garagem e logo por detrás, os aposentos do meu “mainato”, que naquela altura do campeonato já nem o tínhamos, pois a situação tornava as pessoas desconfiadas.

Percebíamos, nos sons distantes de rajadas de metralhadora que o perigo continuava a rondar
E foi quando começou a germinar a ideia na cabeça do meu pai, que a melhor opção era virmos para a Metrópole…
Retornados ou refugiados, chamem-lhe o que quiserem…mas são cicatrizes que jamais irão sarar!


Celeste Vieira