quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A ILHA DA HUMANIDADE

Ilha de Moçambique: A Ilha da Humanidade


Declarada pela UNESCO «património da humanidade», a pequena ilha do Índico é um monumento vivo à tolerância e à convivência pacífica entre as mais diversas culturas e religiões. Harmonioso cadinho de raças, o recife coralífero de que houve nome Moçambique bem poderia servir de exemplo ao país e ao resto do continente.
Ao ultrapassar o pórtico – há operários a trabalhar lá em cima, nos andaimes, o que é uma agradável surpresa –, sente-se um calafrio. Deparamos com uma dupla escadaria, que do pátio de chão avermelhado conduz a um imponente palácio, enquanto ao nosso ouvido chegam sons de marimba: dois jovens, abrigados debaixo do pórtico, estão a percutir os seus instrumentos, como se estivessem a restituir à África o que da África foi desviado.
Estamos defronte do seiscentista Palácio de S. Paulo, coração político da ilha de Moçambique, transformado em sede do Governo local, depois de ter sido colégio dos jesuítas (não é de admirar, por isso, que tenha contígua uma capela com torre sineira). Era aqui e ao largo fronteiro, cujo calcetamento nos faz lembrar as ondas marinhas, que chegavam as personalidades importantes desembarcadas no ancoradoiro que entra pela baía, em direcção ao continente. Era aqui, no Palácio dos Capitães-Generais, que se decidiam as políticas – políticas comerciais, é claro.


O ouro e o marfim, depois os escravos, e sobretudo uma escala segura na rota do Oriente eram os motivos que conseguiam reter neste minúsculo território de pouco mais de três quilómetros de comprimento por 350/500 metros de largura algumas centenas de portugueses e asiáticos. Sem água potável, ontem como hoje. «Uma pequeníssima e insignificante ilha de Moçambique, conhecida pela inclemência do seu clima pestilento, pela aridez do solo e pela absoluta falta de água, pelos furiosos tufões...»: era com estas cores escuras que a pintava Frei Bartolomeu dos Mártires no século XVI.

O Palácio, o mais bem conservado da cidade, acolhe um museu com mobiliário e alfaias da época. Sobressai nele um púlpito, que é um digno exemplar do estilo indo-português.
Com o som das marimbas ainda a vibrarem nos nossos ouvidos, voltamos cá para fora. É preciso descer para sul, percorrer ruelas e pracetas carcomidas pela decadência em que se encontram, para encontrarmos de novo pessoas. No mercado do Celeiro, a poucos passos da grande mesquita pintada de verde, o bulício é constante. Da praia ali ao lado, chegam os fornecimentos de mercadorias. Estamos no começo da cidade dos macuti, onde vive a maioria dos habitantes, que se estende até à Ponta da ilha. A ruptura entre a «cidade de pedra e cal» e a «de macuti» (macuti é o nome da palha de palma utilizada pelos habitantes para fazer o tecto das casas) não podia ser mais abrupta. Entre as duas cidades há um desnível de dois/quatro metros. As pedras que serviram para construir a cidade colonial foram arrancadas no sector sul da ilha, onde pulularam depois os bairros populares. Que têm os nomes de Esteu, Litini, Makaripi, Marangonha, Muthakani...


Quando se fala na ilha de Moçambique, somos imediatamente levados a pensar em crisol de culturas, encontro de povos, encruzilhada de civilizações, harmonia de diversidades. «Qualquer ilha tem a sua magia, o seu encanto. E a ilha tem um exotismo, uma magia própria», admite com orgulho Helena Abel Ali Vieira, uma mulher que se diz «bem macua», mas que pretende ser também intercultural, pela história e por opção.


Mas sobre aquilo que ao visitante se apresenta como espaço de harmonia pesa uma herança de conflitos. «Os cristãos fazem coisas maravilhosas..., os missionários organizam o acolhimento para os estudantes, inclusive para os muçulmanos, vindos de fora para aqui estudarem», afirma um homem do lugar, muçulmano como quase todos os outros daqui. «Quando há fome, ajudam, vão à procura de alimentos... Quando se deu a vaga de refugiados vindos de Lunga, podiam contar com a ajuda da Cáritas...» Mas «a Igreja Católica permanece ainda como uma tradicional inimiga», não se cansava de repetir, em plena sessão da autarquia, na presença de um missionário, um outro velho muçulmano, embora tenha acrescentado imediatamente que a situação se podia agora considerar ultrapassada.


Infelizmente, as crónicas relatam um passado de dor. Como as de um jesuíta que, de passagem pela ilha no século XVI, descrevia uma terra habitada pela sede de marfim e de ouro, enquanto a comunidade muçulmana, aqui presente muito antes da chegada dos portugueses, sobrevivia com dificuldade. Um franciscano pensou mesmo em mandar demolir a mesquita. Os fiéis de Alá acharam que se havia passado das marcas e incendiaram todas as cruzes que encontraram, causando até estragos na fortaleza. Em 1575, o padre Francisco de Monclaro constatará que, do bairro muçulmano da Ponta, não restam senão ruínas.


 
E estes não foram episódios esporádicos. «A população portuguesa», segundo o historiador Alexandre Lobato, «organizou-se, no século XVI, em redor da Torre Velha (destruída pelos holandeses e que é agora o Palácio de S. Paulo, ndR) e da árabe ou moura no Celeiro. O fosso religioso que na época separava os habitantes obrigava-os a viver em bairros separados, cada qual com os seus templos.» Era, de resto, «um esquema que os portugueses traziam do reino, onde as comunidades minoritárias de judeus e mouros viviam fisicamente apartadas. Herdado da Espanha muçulmana e da reconquista cristã, era um modelo importado que os portugueses aplicaram na ilha de Moçambique, pela primeira vez no Oriente» (Manuel Lobato).

O centro do tráfico

Porém, não foram só os fanatismos religiosos que marcaram o passado de Muhipiti (é este o nome da ilha em macua, a língua local). Também a escravatura, a partir do século XVIII. As feitorias, as vistosas mansões com acesso directo ao mar estão ali para no-lo recordar. E no Norte de Moçambique o tráfico acabou mais tarde que noutras partes da África, entrando pelo século XX adentro (documentada até 1902, segundo René Pelissier na sua História de Moçambique, Lisboa 1994, e provavelmente praticada até 1914 pelos esclavagistas árabes e das Comores). Calcula-se que tenham saído pela costa moçambicana, ao longo de 150 anos, pelo menos 450 mil escravos. É certo que nem todos passaram pela ilha de Moçambique. Havia também os portos de Ibo, Inhambane, sobretudo Quelimane, e outros mais pequenos. Mas a ilha registava, sem dúvida, grandes concentrações. E aqui eram embarcados directamente os homens e as mulheres macuas capturados na Macuana, actual província de Nampula, pelos negreiros locais, quase todos da etnia yao.


Moçambique, de certo modo uma colónia estranha entre as demais colónias lusitanas, para onde os próprios portugueses não se sentiam atraídos a emigrar e que dava mais perdas que ganhos ao erário público, tinha no mercado de escravos a sua verdadeira, inconfessada, principal fonte de rendimentos. «O sector mais rendoso conhecia apenas uma mercadoria, o escravo, fosse qual fosse o nome que os exportadores lhe atribuíssem e o destino final. Nunca será de mais recordar que, substancialmente, provinha de Moçambique o povoamento negro das ilhas francesas da Reunião, Mayotte e Nossi-Bé e de uma faixa litoral do Madagáscar. E, durante certos períodos, teremos de acrescentar igualmente os Estados Unidos, o Brasil, as Antilhas espanholas, as Arábias, a Turquia, o Irão, o Transval e outros países de que nunca se ouviu falar.» A longa citação de Pélissier ainda acrescenta que, não obstante a abolição da escravatura decretada por Portugal e que deveria ter sido aplicada integralmente a partir de 1878, «em mais de 95 por cento de Moçambique, a jurisprudência de Lisboa não fazia qualquer mossa nos traficantes africanos».


Para completar o quadro, mais um pormenor: até meados de Oitocentos, a ilha estava interdita à população africana não escrava.

Arquitectura humana


É interessante um relance pelos arquivos, que nos dão notícia de recenseamentos por vezes detalhados. Assim, ficamos a saber que em 1882 a população de Muhipiti era constituída por seis famílias brancas, descendentes de portugueses ou militares; 120 portugueses, brancos ou assimilados; 650 mestiços; 500 árabes ou mouros; 800 cafres alforriados e cinco/seis mil escravos. Em 1859, o total da população havia descido para 4522 pessoas. Desta vez não se fala de «portugueses» ou de «brancos», mas de «cristãos»: são 69 do sexo masculino e 228 do feminino; os mouros são 221; os escravos 3265 (um terço deles mulheres).

Dêmos um pulo até 1940.

Já não encontramos escravos, naturalmente, mas uma cartesiana distinção entre nativos (7797) e imigrados (1425), na maioria portugueses (neles se incluindo, porém, indianos, mestiços, africanos, nitidamente divididos por espécie e número). Em 1968, a população terá descido para 8200 indivíduos: 1300 na cidade de pedra e cal, 6900 na cidade de palha.

Vinte anos mais tarde...
Vinte anos mais tarde acontece um fenómeno que modifica, de forma inédita, a composição da ilha. Sobretudo em 1988, a ponte que liga a ilha ao continente viu passar colunas e colunas de prófugos que fugiam da guerra. Muhipiti atingiu então o máximo de concentração antes do acordo de paz (1992), registando 14 mil habitantes. Uma parte dos deslocados regressará mais tarde às suas terras de livre vontade. Hoje haverá na ilha 12 mil pessoas, repartidas por 200 famílias: metade antigas, muitas das quais são designadas por swahili-macua, de cultura citadina; a outra metade resulta do recente afluxo de macuas vindos do continente, agricultores e pescadores, mas com uma cultura nitidamente rural.
E aqui começaram os problemas, confirmando o que Luís Filipe Pereira, exactamente em 1988, escrevia em Arquivo, boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, a propósito das diferentes influências na arquitectura local: «A ilha é africana, a ilha é moçambicana. A sua originalidade consiste exactamente em ter sabido assimilar todas as influências do Oriente, da Europa e do oceano Índico, para se transformar, ela própria, numa expressão cultural. Os construtores moçambicanos, valorizando a sua própria experiência com inúmeros outros conhecimentos, souberam dar à tradicional massa de pedra e cal usada na África oriental um belo e original aspecto.»
Os trabalhos agora em curso são, desta vez, de arquitectura humana.


Por: PIER MARIA MAZZOLA, Missionário Comboniano

in: "ALÉM-MAR"