domingo, 11 de fevereiro de 2024

sábado, 23 de abril de 2016

A CAÇA AO JACARÉ NO MEU LAGO "AMARAMBA"



A CAÇA AO JACARÉ NO MEU LAGO "AMARAMBA"

“…o meu Pai estava de pé no barco a motor com a espingarda...dois berlindes brilhavam nas águas de uma noite escura como bréu e eu enrolada num cobertor ao colo da minha Avó Olímpia:
- Não espirres agora!- disse ela. O meu Pai diz que é imaginação minha, mas eu lembro-me como se fosse ontem...de todos os pormenores!”

O jantar como habitualmente era cedo. Creio que toda a gente em Moçambique, e ainda por mais no mato, jantava quase logo após o pôr do sol. Os mais velhos conversavam um pouco, sabiam o que se passava através do rádio a bateria, enquanto fixavam a fogueira da outra margem: lá estava ela, a luzir em labaredas gigantes como se queria: era o Sr. Raposo a dizer “estou aqui, estou bem!”, a nossa transmitia-lhe exatamente a mesma coisa: tranquilidade. Éramos só nós, os nossos pescadores e famílias. Eu lá ia à minha vidinha brincar com os moleques ao pé das palhotas que estavam em volta do acampamento…até que chegava a hora da ida para a faina. 


Íamos em fila indiana! Um "petromax" iluminava o caminho e creio que havia outro atrás, por causa dos leões, até que chegávamos ao lago. O meu Lago Amaramba!
Os pescadores subiam para o barco, grande, castanho, feito pelo nosso carpinteiro e projetado pelo meu tio João (solteirão habilidoso, inteligente, gostava de Hemingway, também ele exímio pescador de jacarés, mas nunca gostou de mim, nunca assumiu que na família pudesse haver alguém com sangue negro). Eles iam para um lado, para a pesca do campango, do mucupa, do itíla...


A caça ao jacaré era feita a bordo do barco a motor. O meu Pai levava a espingarda, o focador –com o foco de luz- , o remador –com um pau comprido para fazer deslizar o barco quando parava o motor a fim de não afugentar os répteis- e o pescador que levava a fateicha, um pau com um gênero de anzol para puxar o jacaré depois de morto.


A superfície das águas eram exploradas pelo foco de luz. O jacaré apenas era perceptível pelos olhos que brilhavam à luz que serpenteava o lago- apenas eles e as narinas permanecem fora da água-. O tiro era certeiro, bem no meio dos olhos. Depois com a fateicha, puxava-se o jacaré, pegava-se nele- tudo muito rápido, caso contrário ele afunda- e punha-se no barco. Um ou dois por noite. 

No Rio Lugenda sim, a caça era proveitosa, 8 a 10 por caçada! Aí sei que nunca fui. Nem nunca fui à caça no Rio Lúrio.

Os jacarés são répteis bem adaptados ao meio ambiente e dominam bem o seu habitat. Ao contrário do possam pensar o jacaré não é lento, se se sentir ameaçado ou perturbado, ou mesmo se lhe aparecer algum pitéu nos seus momentos de banho de sol à beira do lago ou rio, corre a uma velocidade impressionante. Dentro da água, em caso de ataque, é difícil escapar-lhe e geralmente o fim é trágico; ele é um exímio nadador.


Na manhã seguinte tirava-se a pele para secar, a carne comiam-na os abutres.
O peixe trazido pelos pescadores era aberto e seco com sal...
Eram assim os dias/noites quando ia para o acampamento no Lago Amaramba...
...M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O-S!


Iolanda Ribeiro.

domingo, 18 de outubro de 2015

REGRESSO AO PASSADO...



Ao transpor a entrada da cidade e já noite escura, veio-me á lembrança o último e tão longínquo dia em que, por ordem do meu pai, eu teria que ir embora daquela cidade…
Naquela tarde de sol abrasador, eu caminhava pela rua de alcatrão carcomido pelo tempo e pelos salpicos da água salgada que respingava da baia em horas de maré-cheia.
O meu coração batia ao compasso dos meus pés no chão. Uma lágrima teimosa aflorou ao canto de um dos meus olhos e escorreu lentamente pela minha face
Dobrei a esquina e ali estava em frente de mim, a rodoviária onde eu iria comprar o bilhete do autocarro que no dia seguinte me levaria, para todo o sempre, para longe de alguém que, tão fortemente, me prendia aquela cidade!
Os meus 16 aninhos eram uma mistura de ilusões e sonhos que se estavam a desfazer, tal e qual como as leves ondas que embatiam de encontro ao muro que ladeava a marginal.
Recordei a última noite naquela cidade, perdida no tempo, mas bem viva na minha lembrança já que fora a última vez que estivera com os meus amiguinhos e entre eles, aquele “alguém” tambem viera para se despedir de mim, mas rapidamente voltei á realidade, pois acabávamos de sofrer mais um puxão do jipe que era “chovado” pelo nosso.


Queria entrar na cidade de dia, para poder observar com olhos gulosos e ávidos tudo o que durante anos revivera na minha imaginação, tudo o que deixara há mais de três decadas!! Apesar de imaginar que muitas alterações deveriam ter acontecido em diferentes partes da cidade, mas por um percalço e África tem muito disso, a muitos quilómetros do nosso destino, encontramos quatro sul africanos a quem não tivemos coragem de negar auxilio pois encontravam-se imobilizados devido ao jipe ter avariado e sendo assim chegamos ao nosso destino com algumas horas de atraso
O dia tinha sido o que poderíamos considerar um dia de calor tórrido, mas aquela hora e devido á leve brisa vinda da baía, o ar apresentava-se levemente morno, mas agradável. Apesar de nos sentirmos necessitadas de um bom banho e sem muita fome, pois passamos horas a comer castanha de caju durante a longa viagem. procuramos um restaurante e o melhor que nos indicaram foi o “Maçaroca”
Entre a nostalgia do passado e o primeiro contacto com a cidade que há tantos anos deixara para trás, existia em mim um doce e inebriante prazer de estar de volta, o cheiro característico que pairava no ar, esquecido por tantos anos, rapidamente se instalou nas minhas narinas e me estava trazendo de volta aquele tempo ….
Findo o jantar, empreendemos novamente viagem, desta vez com destino á praia.
Noite a dentro e receosas do terreno que pisávamos pois a desconfiança era nossa companheira, embora de alguma forma nos sentíssemos confiantes devido a quem nos acompanhava ser típico habitante da terra e por isso conhecedor dos costumes há muito por mim esquecidos
Finalmente e depois de, por breves minutos andarmos perdidos, nos deparamos com um mini aglomerado de casinhas brancas entre palmeiras, coqueiros e outras vegetações típicas da região.
Tudo era magico e a simplicidade reinante naquele lugar era como um lavar de alma da civilização a que estávamos habituadas…
Acordei com o sol entrando pela janela de cortinas coloridas e entreabertas e o meu primeiro impulso foi saltar da cama e ir receber aquela madrugada de sol radioso que ás 5 e 30 da manhã já nos indicava que o dia iria ser quente.
O amanhecer em Africa é esplendoroso!!!


Tem outro encanto e características únicas...
Com uma caneca de café na mão, pois a meio do caminho do dia anterior, tínhamo-nos abastecido de provisões suficientes para os dias da nossa estadia na praia, saí de “babydoll” para a varanda, sentei-me num cadeirão de verga e observei tudo o que a minha vista alcançava e, obviamente, o mar que em frente, os coqueiros deixavam vislumbrar, despertou em mim a ânsia de correr para aquelas águas calmas e quentes para me banhar, mas antes e sem sequer pensar no pormenor que estava com 2 horas a mais de fuso horário, mandei algumas mensagens…
A Lu juntou-se a mim e em pouco tempo estávamos a explorar o caminho rumo á praia
Um extenso areal deserto, banhado pelas calmíssimas águas do Indico, foi-nos apresentado pela mãe natureza
Largamos as mochilas e corremos para a água, como duas crianças felizes, livres de preocupações, e de pensamentos receosos, pois continuávamos a pisar terreno que não nos inspirava muita confiança, já que finda a guerra e já lá iam muitos anos, as noticias que se ouviam não eram muito animadoras em questões de segurança.
Naquele momento não existia a saudade do passado, nem a lembrança da incerteza do futuro, apenas o presente e a vontade de tirarmos partido de todo aquele paraíso só nosso...
Ao longe surgiu um nativo carregado de bijuterias artesanais, conchas, capolanas e outros artigos que faziam as delicias dos turistas...
De má vontade, saímos da água e nos dirigimos para os nossos pertences, já que o nativo se dirigia para nós, seguido de outros que entretanto surgiram tambem.
Entramos em panico com receio de sermos atacadas.
Olhamos uma para a outra e nos interrogamos com os olhos, mas rapidamente nos apercebemos do quanto aquela gente era pacifica e simplesmente tentavam vender algo para assegurarem o próprio sustento.
Tive pena!!
Sobretudo de um menino de nome Fernando, que me dizia:
-Comprrra senhorra!!
E eu respondia:
-Não posso comprar tudo...Amanhã compro mais!!
E o Fernando insistia:
- Amanhã eu irrr na escola, não vai pode virrr aqui!
E logo outro se adientava e dizia:
-Comprrra a mim senhora, eu é irmão do Fernando...
E na ansia de todos quererem vender , guerreavam uns com os outros e esta historia repetia-se todos os dias em que nos dirigiamos á praia.
Quando regressavamos á casa que nos acolheu, passavamos pelo mercado ao ar livre ou debaixo das barraquinhas típicas onde se vendia de quase tudo um pouco: Frutas tropicais, marisco ao preço da chuva, acabado de ser pescado, legumes, águas engarrafadas, para despistarmos a cólera ou outro tipo de doenças possiveis etc, etc.....


Tão afastada da realidade me sentia que, no dia, que voltamos á cidade, poucos sitios, que outrora conhecera tão bem, conseguia localizar com precisão na minha cabeça, apesar de me aperceber que muitas das coisas continuavam iguais e no mesmo lucal. Sentia uma especie de turpor que não me deixava destinguir a realidade dos sonhos que tantas vezes sonhara
Aquele miradouro em frente á baía a que dão o nome de Pergúla, símbolo das minhas reflexões nos meus doces anos dourados, ali estava, igualzinho... deixei o meu pensamento, por momentos, vaguear pelo meu passado tão longincuo e lembrei de quantas vezes ali me refugiara, sempre com o meu pensamento voltado para aquele alguém que naquela época e devido ao meu espirito romântico e carente, era o meu principe encantado. Pensei naquela paixão, que eu tinha vivido com toda a força do meu ser, de quantas lagrimas de desespero, eu havia derramado por o ver ali passar e ele, sempre me ignorando...
Onde estaria?
Ainda visitei outras instalações que, de algum modo, me diziam muito, me fizeram voltar ao passado e recordar com muita nostalgia os meus 16 aninhos que jamais voltariam...
Quis ir aquela vilazinha, onde na minha pré adolescência tinha vivido e da qual eu tinha maravilhosas lembranças e assim, por entre a savana, percorremos vários quilômetros de estrada de terra vermelha e batida
Mau grado meu, deparei com uma terra desconhecida, onde não havia nada, nada, do que tinha deixado!!!
A casa onde vivera nâo exista mais, as estradas, outrora, alcatroadas e largas, eram agora, caminhos de cabras com grandes valas por onde passavam rigueiros de água em épocas de chuva.
Passeios públicos?!! até Deus iria duvidar que algum dia tivessem existido...
E...alguém um dia, havia gravado o meu nome num deles...fui, levada pela curiosidade, á procura dessa recordação, mas havia-se esfumado juntamente com o passeio público!


O Clube onde, tantas e tantas tardes de pura diversão ali havia passado, esse ainda lá estava de pé, pintado de rosa, mas com poucas semelhansas do que tinha sido. Aquela enorme piscina onde tinha passado espectaculares tardes de lazer, era agora, apenas um tanque grande, seco e sem a mais pequena ideia de se poder imaginar o que tería sido no passado
Outrora o soberbo jardim em fente ao Clube, estava agora, um campo de ervas daninhas e rasas, em nada semelhante ao que fora nos anos 70
O hotel...meu Deus!!!
Deu-se ali um apocalipse e varreu quase tudo, depois... a vida foi emergindo lentamente, mas de uma maneira pré-histórica
Quando fizemos a viagem de regresso eu sentia-me transtornada e arrependidissima daquela visita.
Toda aquela tristeza foi compensada com um regalado almoço em casa da D. Felicidade, com alimentos e frutas típicas.
Regressamos ao entardecer á nossa casinha da praia, onde não havia rádio, tv, revistas, jornais, nada de nada, que nos ajudasse a passar o tempo, apenas o silêncio daquelas noites tropicais, umas vezes quentes, outras ventosas, onde os ramos das árvores batiam de encontro á janela do nosso quarto nos assustando, mas em redor existiam outras casinhas ocupadas por sul africanos em férias e isso acalmava os nossos temores


Quando tivemos que deixar aquele cantinho paradisíaco, já que a boleia que nos havia levado estava de volta á capital e tínhamos que a aproveitar, ficou-me um sabor agri-doce na boca, antevendo uma saudade que já existia mesmo antes de a sentir. Tive a nítida certeza que meu coração se partiu em duas metades e uma delas ficou lá vagueando para todo o sempre, ou quem sabe!! á espera que um dia volte para a recuperar...

Longo, mas longo caminho nos aguardava para a volta.

Atravessamos a cidade novamente e á medida que ela ia ficando para trás, eu pensava que aquela brecha do tempo que se tinha aberto na minha vida para me reencontrar com o passado estava se fechando novamente, porém, embora naquele momento ainda não o soubesse, iría fechar-se muito lentamente, pois outras grandes surpresas relacionadas com o meu passado, ainda me esperavam...

Celeste Vieira






quarta-feira, 16 de setembro de 2015

MACACHULA


Existem situações incríveis que nos deixam a pensar…
Há 2 anos atrás ouvi falar muito de um oftalmologista e resolvi procura-lo na esperança de um milagre…
Era um dia de inverno e chovia tanto! Lembro que entrei no consultório já de noite.
Quando chamaram pelo meu nome, fui ter com o médico do qual ouvia dizer maravilhas sobre operações á vista
Um cinquentão de cabelos brancos, charmosíssimo, bem-falante, e de uma simpatia extrema que me deixou encantada, mas também super desiludida com o prognóstico que me deu, mas isso é outra história…
Fui para casa derrotada, desiludida, mas com uma sensação incrível de familiarização com o rosto bonito e sorridente do médico.

Nos dias seguintes, aquilo não me saía da ideia e comecei a ligar os pontos: O nome, o ser de Moçambique (que já nem lembro porquê, essa conversa veio á tona) …tinha que ser ele!
O mundo é uma aldeia e existem coincidências incríveis!
E…quando voltei ao consultório, não resisti e tive que perguntar:
- O senhor Dtor não é o João Paulo que vivia na Matola e costumava ir para casa da “família Oliastro”?
Olhou-me de alto a baixo antes de responder:
- Sou…
- Eu sou a vizinha da frente…
O rosto dele iluminou-se mais ainda se possível e apertou-me num abraço alegre e com uma satisfação tão grande que me contagiou e de repente estávamos naquela época e recordamos tantas coisas! Sobretudo as noitadas em casa da “família Oliastro”, naquele tempo da guerra em que nos refugiávamos todos em casa do meu vizinho da frente, porque a casa tinha um esconderijo secrecto no sótão que usaríamos caso fosse preciso…
Os adultos munidos de armas, ficavam de vigia e nós (a malta nova), passávamos o tempo jogando cartas e conversa fora até adormecer-mos…
Inevitavelmente tivemos que falar dos nossos amigos, no fundo eu tinha uma certa esperança que ele me conseguisse dar algumas notícias sobre eles, mas nada de nada!
Estes acasos da vida por vezes desencadeiam lembranças que julgamos adormecidas para sempre no cérebro. Acontecimentos de vida que nos levaram a perder os nossos amigos de infância e adolescência e até os nossos pertences que eram parte integrante de todos nós e que ficaram para sempre perdidos na história de todas as nossas vidas!
Penso que estávamos em 1974…
Interiorizo o meu pensamento e volto a viver aqueles momentos que tinha jurado esquecer definitivamente, pois não gosto de recordações ruins, essas eu procuro bloquear no meu cérebro…
Mas porque África, quer queira-mos, quer não, mesmo a distâncias milenares, está sempre presente nas nossas vidas, já que as lembranças são uma constante em cada dia mais quente, em cada semelhante de pele cor de ébano que por nós passa, em cada supermercado que vende frutas tropicais e outros artigos. Em cada palavra, nome de certos utensílios, que por força do hábito, jamais deixaremos de utilizar. África mesmo longe faz parte do quotidiano de cada um de nós, que de lá veio…
A cidade de Lourenço Marques começava a dar indícios que tudo começava a despencar e brevemente estaria a ferro e fogo, cabia a cada um tentar salvar a pele, já que no meio de todo aquele caus, era a única coisa que importava.
Enquanto uns tentavam passar a fronteira para a Africa do Sul apenas com a roupa que tinham no corpo, e outros eram chacinados selvaticamente, havia ainda os que tentavam a sorte de conseguirem embarcar no primeiro avião que os trouxesse a porto seguro, neste caso a Metrópole!
Meu pai, teimoso e com as suas ideias mirabolantes, sentindo-se um “Tarzan rei na selva “já que era lá que se sentia bem e achava que lá estaríamos protegidos de todo aquele inferno, optou por nos fazer largar o conforto da nossa casa da Matola e rapidamente, antes que se fizesse tarde, metemo-nos ao caminho…
Decorridas já algumas 12 horas em que viajávamos por uma estrada interminável, o calor amolecia-nos, a roupa colava ao corpo transpirado, os pneus do jipe deixavam o rasto no alcatrão derretido pelo calor e o nosso destino, que só o meu pai conhecia, nunca mais chegava!
Foi uma viagem para esquecer, tal o desânimo, o desespero, a insatisfação de termos que suportar tudo aquilo que aos olhos do meu pai era a coisa mais natural do mundo, mas que para nós era a entrada para o inferno.


Há muito que havíamos saído da estrada de alcatrão e o jipe rodava lenta e cautelosamente por uma picada obrigando-nos a embrenharmo-nos mais e mais no coração da selva
Tinha perdido a noção de quanto tempo já havia passado, quando se nos deparou uma pequena aldeia indígena.
Logo fomos cercados por olhos escuros e curiosos, principalmente dos mufanas que davam mostras de nunca terem visto um ser humano de outra cor.
Meu pai falou com uns quantos homens em landim e de seguida continuamos por aquela densa selva sem trilho á vista, apenas seguiam alguns homens á frente que cortavam a ramagem das árvores e tentavam alargar uma clareira por onde o jipe pudesse passar…
Algum tempo depois, meu pai parou o jipe, mandou-nos sair, e encaminhou-nos para a beira de uma vala enorme, que em épocas de chuva seria um ribeiro, mas que naquela altura estava completamente seco e coberto de plantas verdejantes.
Pacientemente e por ordem dele, ficamos a aguardar, nem nós sabíamos o quê, mas aos poucos íamos percebendo o desenrolar da situação…
Entretanto começam a chegar mais homens que descarregam o jipe.
Convém salientar que íamos munidos de tudo o que era necessário para uma estadia prolongada e o mais confortável possível por aquelas paragens
Foram cortadas varias árvores de pequeno porte, mas muito fraudulentas e com elas cobriram o jipe, de maneira que se confundisse com a restante selva de uma densidade abismal
E então começou a nossa peregrinação a pé…
Alguns homens continuavam a abrir caminho com as catanas. Eu, meu irmão e minha mãe íamos no meio, em fila indiana, o meu pai logo atrás com uma arma na mão, não fosse aparecer alguma fera de repente, e os restantes homens atrás carregando todos os nossos pertences!
Não sei quanto tempo caminhamos, mas foi bem á vontade umas duas horas
Por fim o nosso destino…
O acampamento do “Macachula”, um negro forte e guerreiro que sempre acompanhava o meu pai pelo mato, ora em caçadas, ora em insistentes procuras de madeiras exóticas para o meu pai exportar para a África do Sul
Um acampamento com uma única palhota, um enorme cajueiro, uma mesa e cadeiras debaixo do cajueiro, por perto o típico fogão africano, que consistia numa fogueira com três pedras formando um triangulo, que serviam de base ás panelas onde cozinhavam os alimentos.
Foram colocados 2 colchões em cima das esteiras, junto do pé do cajueiro, que seriam as camas do meu pai e meu irmão.
A mim e minha mãe, foi-nos destinado a palhota como quarto…
A minha vista abarcou o horizonte possível de enxergar e foi-me dado observar por entre o matagal que estávamos junto a um rio de extenso caudal, mas que por ser época seca apenas corriam uns escassos fios, nuns lados mais largos, noutros mais estreitos, de água cristalina…
E, enquanto a minha mãe, (por gestos e tendo quando necessário o meu pai como interprete) e as mulheres do “Macachula” tentavam organizar a nossa estadia, corri a procurar o meu bikini e juntamente com o meu irmão rolamos por uma encosta abaixo desembocando no rio…
Por ventura nos lembramos dos crocodilos que poderiam ser os donos e senhores daquelas águas e em qualquer local poderiam estar á espreita de alguma presa fácil?!
Não!!
Não lembramos de nada disso, apenas aquela água que corria suavemente sem destino, nos convidava a entrar nela e foi divinal…
Podemos finalmente refrescar-nos e deliciarmo-nos, pois com aquela água ali á mão todo o resto era mais fácil de suportar, mas n demorou muito que n ouvíssemos o meu pai aos berros e a fazer sinais para que saíssemos dali rapidamente
Os crocodilos!
Ai os crocodilos!

Eu cá n vi nada…
Nem o meu irmão, mas corremos a bom correr para junto de meu pai que n largava a arma…
Fomos terminantemente proibidos de voltar para o rio.
“E agora que vamos fazer aqui neste fim de mundo sem nada de nada?”
O nosso velho rádio de pilhas era o meu companheiro, assim como o meu caderninho onde escrevia como se falasse com uma amiga imaginária…
Á noite acendia-se o petromax e á roda da fogueira víamos e ouvíamos as danças e cantorias das mulheres e filharada do “Macachula”, contarem as suas histórias que meu pai nos traduzia.
Ao longe, muito ao longe, via-mos os clarões das queimadas nas planícies, que se vislumbravam com mais intensidade durante a noite.
Logo pela manhã, as mulheres do “Macachula”, com as latas vazias á cabeça e os filhos nas costas, presos pelas capulanas, faziam as suas peregrinações a caminho de alguma nascente algures e traziam água para o acampamento.
Meu irmão inspecionando cuidadosamente a beira do rio, conseguiu descobrir um local onde poderia pescar e assim passava horas a pescar e por incrível que parecesse havia sempre uns camarõezinhos para o jantar, tal era a fartura dos ditos cujos!
O único conforto que sentia era á noite quando, ao lusco-fusco, depois dos banhos improvisados entre o matagal numa grande bacia, minha mãe e eu nos íamos deitar nos lençóis brancos e macios que cheiravam a saudade da nossa casa da Matola.
Numa dessas noites quentes de céu estrelado, tendo como música de fundo o piar das aves noturnas e o coaxar das rãs no rio e o petromax dava uma ajuda á pouca claridade da lua, eu preparava-me para mais uma noite na palhota…
Já lá dentro e disposta a deitar-me lembrei-me que não tinha dado o meu beijo de boa noite ao meu pai como era de praxe. Levantei-me e abri a improvisada porta de madeira cheia de gretas, por onde entrava o ar que circulava dentro da palhota, mas um enorme baque no chão fez-me recuar e dar um grito, o “Macachula” de catana na mão, como um guardião, sempre espreitando o perigo, correu para a entrada da palhota e como quem corta cebola em cima de uma tabua, deu umas valentes catanadas numa cobra enorme que estava na porta e quando eu a abri, caio no chão. Ainda hoje me arrepio só de pensar que durante a noite poderia ter um encontro imediato com aquela horrível criatura.
Fiquei em choque e naquela noite não dormimos dentro da palhota
As notícias iam chegando pelo rádio aquele fim de mundo e só passados uns 15 dias meu pai resolveu que era chegada a hora de retornarmos para a civilização
A guerra é tramada, é bem pior que todo o desconforto que passamos, bem pior que qualquer selva cheia de perigos, era o que íamos percebendo á medida que nos aproximávamos de novo de Lourenço Marques…
Casas queimadas que ainda fumegavam, autocarros cheios de gente carbonizada, pessoas errando sem destino…
A entrada na minha rua fez-se em silêncio, a própria rua era um silêncio de morte, deserta, de casas com portas abertas, desocupadas, pois os meus vizinhos, na ansia de quererem fugir, deixaram tudo para trás. Apenas o nosso vizinho da frente e já de malas feitas também, ainda restava, pois a família já tinha passado toda para a África do Sul. Foi aí que perdi o rasto aos meus amigos…


A nossa casa continuava ali impecável á nossa espera e foi como entrar num santuário que nos resguardaria de todos os perigos. É com imensas saudades que recordo a minha casa grande, muito grande, com enormes janelas, já naquele tempo com grades, todas as janelas de todas as casas tinham grades. A porta da “copa” com duas portas, típico costume em países tropicais. O meu quintal era grande, com muitas árvores de frutos. Ao fundo do quintal era a garagem e logo por detrás, os aposentos do meu “mainato”, que naquela altura do campeonato já nem o tínhamos, pois a situação tornava as pessoas desconfiadas.

Percebíamos, nos sons distantes de rajadas de metralhadora que o perigo continuava a rondar
E foi quando começou a germinar a ideia na cabeça do meu pai, que a melhor opção era virmos para a Metrópole…
Retornados ou refugiados, chamem-lhe o que quiserem…mas são cicatrizes que jamais irão sarar!


Celeste Vieira



sábado, 18 de abril de 2015

Carta aberta de Mia Couto ao Presidente da África do Sul







Carta aberta do
Presidente da “Fundação Fernando Leite Couto”,
Mia Couto
Contra o genocídio de moçambicanos na África do Sul
Exmo. Senhor Presidente Jacob Zuma
Lembramo-nos de si em Maputo, nos anos oitenta, nesse tempo que passou como refugiado político em Moçambique. Frequentes vezes nos cruzámos na Avenida Julius Nyerere e saudávamo-nos com casual simpatia de vizinhos. Imaginei muitas vezes os temores que o senhor deveria sentir, na sua condição de perseguido pelo regime do apartheid. Imaginei os pesadelos que atravessaram as suas noites ao pensar nas emboscadas que congeminavam contra si e contra os seus companheiros de luta. Não me recordo, porém, de o ter visto com guarda costas. Na verdade, éramos nós, os moçambicanos, que servíamos de seu guarda costas. Durante anos, demos-lhe mais do que um refúgio. Oferecemos-lhe uma casa e demos-lhe segurança à custa da nossa própria segurança. É impossível que se tenha esquecido desta generosidade.
Nós não a esquecemos. Talvez mais do que qualquer outra nação vizinha, Moçambique pagou caro esse apoio que demos à  libertação da África do Sul. A frágil economia moçambicana foi golpeada. O nosso território foi invadido e bombardeado. Morreram moçambicanos em defesa dos seus irmãos do outro lado da fronteira. É que para nós, senhor Presidente, não havia fronteira, não havia nacionalidade. Éramos, uns e outros, irmãos de uma mesma causa e quando tombou o apartheid a nossa festa foi a mesma, de um e de outro lado da fronteira.



Durante séculos, emigrantes moçambicanos, mineiros e camponeses, trabalharam na vizinha África do Sul em condições que pouco se distinguiam da escravatura. Esses trabalhadores ajudaram a construir a economia sul-africana. Não há riqueza do seu país que não tenha o contributo dos que hoje são martirizados.
Por todas estas razões, não é possível imaginar o que se está a passar no seu país. Não é possível imaginar que esses mesmos irmãos sul-africanos nos tenham escolhido como alvo de ódio e perseguição. Não é possível que moçambicanos sejam perseguidos nas ruas da África do Sul com a mesma crueldade que os polícias do apartheid perseguiram os combatentes pela liberdade, dentro e fora de Moçambique. O pesadelo que vivemos é mais grave do que aquele que o visitava a si quando era perseguido político. Porque o senhor era vítima de uma escolha, de um ideal que abraçou. Mas os que hoje são perseguidos no seu país são culpados apenas de serem de outra nacionalidade. O seu único crime é serem moçambicanos. O seu único delito é não serem sul-africanos.

Senhor Presidente
A xenofobia que se manifesta hoje na África do Sul não é apenas um atentado bárbaro e cobarde contra os “outros”. É uma agressão contra a própria África do Sul. É um atentado contra a “Rainbow Nation” que os sul-africanos orgulhosamente proclamaram há uma dezena de anos. Alguns sul-africanos estão a manchar o nome da sua pátria. Estão a atacar o sentimento de gratidão e solidariedade entre as nações e os povos. É triste que o seu país seja hoje notícia em todo o mundo por tão desumanas razões.
É certo que medidas estão a ser tomadas. Mas elas mostram-se insuficientes e, sobretudo, pecam por serem tardias. Os governantes sul-africanos podem argumentar tudo menos que estas manifestações os tomou se surpresa. Deixou-se, mais uma vez, que tudo se repetisse. Assistiu-se com impunidade a vozes que disseminavam o ódio. É por isso que nos juntamos à indignação dos nossos compatriotas moçambicanos e lhe pedimos: ponha imediatamente cobro a esta situação que é um fogo que se pode alastrar a toda a região, com sentimentos de vingança a serem criados para além das suas fronteiras. São precisas medidas duras, imediatas e totais que podem incluir a mobilização de forças do exército. Afinal, é a própria África do Sul que está a ser atacada. O Senhor Presidente sabe, melhor do que nós, que ações policiais podem conter este crime mas, no contexto atual, é preciso tomar outras medidas de prevenção. Para que nunca mais se repitam estes criminosos eventos.

Para isso urge tomar medidas numa outra dimensão, medidas que funcionam a longo prazo. São urgentes medidas de educação cívica, de exaltação de um passado recente em que estivemos tão próximos. É preciso recriar os sentimentos solidários entre os nossos povos e resgatar a memória de um tempo de lutas partilhadas. Como artistas e fazedores de cultura e de valores sociais, estamos disponíveis  para de enfrentar juntos com artistas sul-africanos este novo desafio, unindo-nos às inúmeras manifestações de repúdio que nascem na sociedade sul-africana. Podemos ainda reverter esta dor e esta vergonha em algo que traduza a nobreza e dignidade dos nossos povos e das nossas nações. Como artistas e escritores queremos declarar a nossa disponibilidade para apoiar a construção de uma vizinhança que não nasce da geografia mas de um parentesco que é da alma comum e da história partilhada.
Maputo, 17 de Abril de 2015

Mia Couto


sábado, 11 de abril de 2015

...a minha Zézinha...







...Zézinha…
Era minha Mãe.
Assim…simplesmente… era  a Zézinha…
Assim…nesta tarde de Sábado e com um café por companhia resolvi dizer algo que fez a Zézin…hoje a estrela mais brilhante e a quem eu peço proteção antes de adormecer…


Zézinha viveu em Moçambique…terra onde nasci…onde ela era feliz…a Zezinha  fez algo que hoje teria outra atenção por esta sociedade dita moderna. Pois então o que fazia?



A Zézinha e mais um grupo de Senhoras amigas dedicaram-se ao voluntariado durante anos.
Todas as semanas, em dias pré-determinados deslocavam-se a pé, aos bairros mais pobres e degradantes da cidade de Nampula para visitar as dezenas e dezenas de homens e mulheres que sofriam de lepra…doença terrivel, dramática e mortal…não tinham qualquer espécie de tratamento ambulatório…conversavam com elas…tentavam terminar com o silêncio doloroso e habitual nestes doentes…pobres em último grau…tratavam o melhor que podiam e sabiam as suas feridas, desinfetando e aplicando alguns medicamentos que possuíam…todas as semanas havia um dia dedicado à assistência aos leprosos…e nesses dias, a Zézinha chegava a casa sempre muito impressionada com as experiências que tinha vivido...por vezes lá me contava algumas experiencias dolorosas que tinha acabado de viver…



…mas a Zezinha fazia mais…trabalho de voluntariado deste Grupo extraordinário de Senhoras fazia mais…era…simplesmente, todas as semanas tinham um dia destinado a visitar o Hospital Militar de Nampula – Moçambique. Neste Hospital situado na Cidade onde estava sediado o Quartel General do Exército Português em Moçambique era o primeiro destino de todos os feridos em combate. 

Pois a Zézinha e as suas amigas visitavam naquele dia escolhido os feridos em combate para lhes dar alento e uma palavra amiga…rapazes de tenra idade…alguns sem pernas ou braços…outros cegos…soldados do exército português que por vezes tinham como vizinhos de enfermaria outros soldados guerrilheiros da Frelimo. Seus inimigos de combate…

O que mais emocionava a Zezinha era precisamente o facto de soldados adversários viverem lado a lado…feridos…e por vezes apoiando-se mutuamente…a Zézinha chegava a casa sempre muito triste e incomodada…até porque sabia que o dia que o seu filho iria pegar em armas se aproximava assustadoramente.


Mas o trabalho de voluntariado da minha Zézinha não ficava por aqui.


…a Zézinha e suas amigas visitavam os já citados bairros periféricos…degradados, deteriorados e corrompidos…bairros onde a delinquência e a prostituição conviviam diariamente…faziam esta visita para quê?...pois para visitarem as mulheres que se dedicavam à prostituição para conseguirem sobreviver e/ou darem de comer aos seus filhos...Da parte da tarde, lá ia a Zézinha e o seu lindo grupo de Senhoras prestar o seu apoio, ou seus conselhos e indicando até  produtos de higienização.


Este era o trabalho de voluntariado que a Zézinha se dedicava.
…emociona-me, enche-me de orgulho e admiração todo o trabalho que a minha Zézinha prestava em regime total  de voluntariado com o seu Grupo extraordinário de Senhoras…

…a minha homenagem simples…simples como eram todas estas Senhoras lindas…
…esta era a minha Zézinha…simplesmente Zézinha…


…neste momento eu penso que…a  frase que eu mais gostaria de ouvir dos meus filhos seria “Eu te amo, Pai”…eu…muito poucas vezes disse aos meus Pais esta frase…eu te amo Pai e eu te amo Mãe…que pena…a Zézinha nos últimos anos da sua vida…por vezes questionava-me… “Filho…tu gostas de mim?”…percebi então a minha falta ou defeito …não transmitir por palavras…de forma viva…o quanto amava aquele ser divino…o remorso que sinto e me persegue por não ter dito “eu te amo Pai”…


…eu te amo Mãe…eu te amo Pai…






João Neves