quinta-feira, 18 de abril de 2013

...o que nos devia unir...


…”Nas últimas semanas que passou em Lourenço Marques, Inácio Ribeiro comprou todas as ferramentas que conseguiu. Depois dos acontecimentos de 7 de Setembro de 1974, sabia que não poderia ficar muito mais tempo em Moçambique e recusava-se a deixar lá as poupanças que amealhara à custa de uma vida de trabalho como torneiro mecânico e das rendas de um prédio que construíra na Rua de Portalegre, no bairro da Malhangalene.
 
Levantava dez mil escudos por semana – o máximo permitido – e guardava o dinheiro num cofre escondido debaixo de dois azulejos com fundo falso junto à banheira em vez de o entregar aos cuidados do Consulado de Portugal como fizeram muitos portugueses. Depois de constituir uma reserva, estudou a melhor maneira de levar consigo mais do que os cinco mil escudos regulamentares. Como as notas não lhe valeriam de nada , converteu o dinheiro em objetos para enviar por via marítima e vender na metrópole.
 
O investimento era arriscado porque a Frelimo considerava sabotagem económica retirar de Moçambique automóveis, motos e uma série de outros bens. Se o mandassem abrir os caixotes, teria sarilhos, mas ou arriscava ou ficava sem nada. Disfarçou as cargas proibidas o melhor que pôde: desmantelou uma moto Suzuki vermelha nova e escondeu as peças num contentor; encaixou um faqueiro de prata dentro da porta de um Alfa Romeo Sud pago à última hora e encheu o depósito de combustível com moedas de vinte escudos.

“Descobri que eram feitas de uma liga de prata e trouxe as que consegui. Não andei a vendê-las na rua, mas houve uma casa de penhores que as comprou ao quilo.” Com o resto do dinheiro adquiriu cinquenta caixas de folha de serrote e várias ferramentas de elevada qualidade que dissimulou no meio das mobílias. Deu-se ao trabalho  de desparafusar  a placa de isolamento da porta do frigorifico para esconder os títulos de propriedade do prédio da Rua de Portalegre, na esperança de um dia poder provar que era o dono do imóvel.

Estava preparado para despachar tudo por via marítima e enfrentar as consequências se fosse descoberto quando um conhecido lhe perguntou:



“Senhor Inácio, quer que não abram os seus caixotes?”

O homem explicou-lhe que, por uns trocos, alguns elementos da Frelimo estavam dispostos a fechar os olhos ao que saía do país. E Inácio, como muitos milhares de portugueses a quem foi dada essa oportunidade, nem hesitou.
Cada um transportou o que pôde: na maioria dos casos, carros, motos, algumas mobílias e objetos de estimação. Mas quem tinha jóias ou diamantes fez os possíveis por os levar consigo, sabendo que teriam sempre valor em caso de necessidade…”

 

“Na década de 1970, este era um cenário comum em Portugal, sobretudo nos meios rurais. Em todo o país, apenas 29% das casas tinham, em simultâneo, água canalizada, eletricidade, banheira e retrete; em Lisboa o valor subia para 51%, mas, em Bragança, não passava dos 8%, ficando a maioria das habitações privadas destas condições básicas. No Alentejo, a situação não era muito diferente.”…



In “Os que vieram de África” de Rita Garcia


...quando pedi uma Coca-Cola disseram-me que não havia...
…para os que vieram de África tudo isto significava um atraso que os surpreendeu e criou outro desanimo em relação ao futuro que os esperava…no entanto, considero que o que nos une não é só a saudade da terra que nos viu nascer e crescer…não é só a saudade do contacto estreito, direto e até diário com a natureza esplendorosa…não é só os laços de amizade e fraternidade…o que nos une é também o desprezo com que fomos recebidos nesta terra que diziam ser a nossa Pátria…o que nos une é a forma como fomos violentados…o que nos une é, ainda, a sigla desprezível com que nos marcaram para toda a vida...retornados…eu que nem aqui nasci e cresci…eu que ainda hoje leio no meu cadastro fiscal a informação de Nacionalidade: NÃO PORTUGUÊS.
…para que a nossa memória não seja curta…é tudo isto que nos devia unir…

 

João Neves



 

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