quinta-feira, 31 de março de 2011

JUMA E COSTÓDIA

                            ...uma história de amor fraterno...

Juma era um aluno negro, filho do Enfermeiro Cristóvão Januário, do Hospital da Ilha de Moçambique. Aluno do Externato Liceal Mouzinho de Albuquerque - 1969.
Custódia, uma aluna negra, interna, filha de um dos poucos Administradores de cor, natural de Moçambique e na altura colocado no Dondo - Distrito da Beira. Aluna do Colégio Nossa Senhora das Vitórias - 1972.

Lembrava-me muito bem deles, quando cheguei a Nampula a 28 de Agosto de 1992.

Depois de hospedada na casa de Hóspedes da Diocese de Nampula, recebida por D. Manuel Vieira Pinto, e pelo Governador Gamito, com quem almocei. Fui levada ao Secretário Padre Martins, estivera em tempos no colégio de S. Paulo, em Porto Amélia -1970.

E preparei o início da minha viagem e objectivos para a partida para a Ilha de Moçambique.
Procurei saber o que era feito de colegas…
Depois de olhar perdidamente para lugares que procurava identificar…só o amor e saudade podia levar á magia de repor tudo no lugar…
Saíra de Moçambique a 28 de Julho de 1976, rumo á Rússia, por fim Portugal…

Saíra de Caia… passara pelos Campos de Alfabetização da Gorongoza…

Avistar-me-ia com o Ministro Chissano e o Ministro Chipande, levava comigo, uma carta de Sua Excia Presidente Samora Machel, entregue por Dr. Sérgio Vieira e Dr. Aquino de Bragança.

…A libertação de meu marido.

…A despedida no Aeroporto do Eng.º José Carrilho.

O meu juramento a Lina Magaia, General Pachinuápa, Dra.Graça Simbine Machel…que voltaria…

Doente de mal de amor, de dor, totalmente perdida nos turbilhões de emoções mal geridas, insatisfeita, parti um dia de Macau rumo a África, com um destino: Moçambique…e lá vivi até 2001.

Ilha de Moçambique, pela manhã…nos últimos bancos…ouço a missa dada pelo Padre Lopes…
Procurei saber o que era feito de Juma e Custódia…que marcaram a minha juventude.

Era cedo no tempo, pois era momento de se negociar a Paz.

Custódia era de Sofala e por lá ficou…que seu pai tinha sido executado…outros que tinha sido morto numa emboscada…
…Tinha medo de ouvir que também ela partiu durante a guerra…

Por meses mantive-me ocupada com o trabalho…mas um dia…já decorria um ano de Paz…de volta á Ilha de Moçambique…vinda de Cabo Delgado com o meu marido… Procurei o pai de Juma, já com mais dados enviados pelo meu pai, que estava em Portugal. Fora ali conhecido como o Sr. Secretário, ou Metamira.

O pai de Juma vivia na Ponta da Ilha…já muito velho…
…As lágrimas correram no seu rosto…olhando os livros que trazia comigo…e o retrato dos estudantes nas escadas do Externato Liceal Mouzinho de Albuquerque…abraçou-me...
Juma foi ceifado numa vida de Professor Primário, colocado no Alua…teimava em ver o pai e não se esquecia dos seus alunos…Neste percurso de vai e vem, entre Nacaroa e Namapa…o autocarro que o transportava é apanhado numa emboscada e morrem todos carbonizados - 1991…perto da Missão do Alua onde era um dedicado educador…
…O pai chorava porque não tinha corpo e alma para ir chorar o seu filho…meu marido…na altura comigo…ofereceu-se para nos levar a Alua, a 400KM e procurar o lugar... Assim foi…

Naquele mato, entre machambas de mandioca e milho, restava uma carcaça de um autocarro…ali…uma grande cruz posta pela Missão…todos descansavam em paz…com ajuda do Padre Lopes e o Padre Ramon, da missão, rezou-se uma missa campal…

1995 – Maputo - Setembro, sou internada de urgência devido a um colapso total de cansaço e esgotamento.

Na clínica privada do Hospital Central de Maputo. Uma cura de sono de um mês. Tinha vivido dois anos de grandes emoções, viagens de milhares de quilómetros, querer tudo fazer, estar em todo o lado. Perdi-me na noção do tempo, das horas, o meu corpo pedia trabalho e não dormia.

Um dia a Enf. Olga Maccô, diz-me que a Médica Psiquiatra, Chefe da Clínica e Hospital de Psiquiatria de Maputo – para lá das Maotas, vinha ver-me a pedido do médico, Director do Hospital Distrital de Pemba e da Deputada Judite Maccô.
De olhos serrados vejo uma mulher negra da minha idade. Falava da chegada da Alemanha, onde fora a um congresso…pediu a minha ficha e pôs os óculos.

No quarto, foi até ao fundo e abriu as persianas, olhei para ela…"pode-me fechar isso?"…veio ao pé de mim…puxou uma cadeira, limpou-me as lágrimas, segurou a minha mão...e ouvi…"Fátima Manuela, tanto tempo." …

…Vi-a na penumbra do passado, olhos negros, de trancinhas, na nuca desenhos bem feitos como carreirinhos, no meio do mato. Ouvia gargalhadas nas escadarias das camaratas…"Custódia…hoje de cabelo "PUFF"? passa a ferro, dizia a São Pereira, como eu e aqui a Fátima Manuela"…. Ouvia ao longe como de costume, quando era carapau frito e no refeitório, acabava num jarro de água.

O teu cabelo já não é "PUFF"?...passas a ferro?...e dei comigo a rir e a chorar. Responde-me…"não Fátima Manuela, ainda te ganho em inteligência. Trato do cabelo”...

Ás gargalhadas, abri melhor os olhos e disse-lhe…"procurei por ti, já lá vão três anos, mas tinha medo que a resposta era não te ver mais. Sofala no conflito...Custódia falou-me da família, dos filhos, do que fazia, do trabalho de Hospital aberto para os doentes com depressões e sempre que podia estávamos juntas… Curou-me dos medos, deu-me muita coragem e muito amor… Mandou-me de volta aos meus filhos… que renegava por serem um travão no meu trabalho… Falou com Diogo, com Joana, com os meus pais para Portugal. No dia que parti…fui vê-la ao consultório e perguntei-lhe…”como me conheceste?”...só me respondeu…"com esses olhos, esse sorriso…nada mudaste, continua assim, vai…estarei aqui sempre que precisares…á tua espera…

Respondi… “és a pérola que seguro na mão… salvaste uma grande mulher, minha mãe, de chorar a perca de uma filha, e a minha filha a perca de uma mãe.

 Não quis despedidas, corri pelo corredor ao fundo…

Esperava-me Nuno Palmeira, marido de minha amiga Luisa Nunes Carrapichana Palmeira, que me levaria de volta a Pemba e aos meus filhos. Nuno, fora também o amigo que me internara em Maputo, e a quem vinha entregue no avião.
Quando nos voltamos a ver, deu-me força para que enfrentasse Portugal e a perca dos meus Pais.
Já em Portugal, decorria 2002, falei dos meus medos, do meu cansaço, pediu-me que me tratasse, pois tinha o Síndrome de Postura, ligada a uma depressão profunda .

Custódia…uma grande médica, que vive e dá a sua vida por um Grande País.

Um dia, uma carta no correio, devolvida, que lhe escrevi…quando parti...
“Escrever um livro é um momento muito só e muito nosso. O escrever um livro puxa por nós muitas emoções, todos nós temos dentro, queimando, a chama da santa loucura. Eu senti-me necessária e esta é uma das melhores sensações que um ser humano pode ter. As minhas emoções são cavalos selvagens.
Um dia escreverei um livro do que nos ensinou e o que nos transmitiu, a vivência dentro dos claustros, jardins, mocidades, retiros, orações ouvidas, gritos ao longe quando a noite cai… suores, odores…a vida é aquilo que fazemos dela, tem raízes ascendentes, no background da família, que o louco sempre foi incluído na linha de vida".

O telefone toca…Custódia está em Portugal…no Porto… Participa num congresso como Oradora convidada…é a Delegada da O.M.S., para a saúde mental e as depressões. Investigadora do projecto Aricepete-Boston.

…E lá estava eu, desta vez na plateia, logo na 3ªfila, em 2004,Fundação Serralves…
…Abraçamo-nos…ouvia calada as minhas palavras ditas com rapidez…não queria que o tempo acabasse…

Quando partiu…só me pediu…”…cuida de ti…ainda tens muito para dar… e agora dá-me o papel que escreveste!”…leu…e a rir…disse-me que…”era a maior…senão a melhor declaração de um louco…”

Um postal de Boston. «ESCREVE…QUE É DOS LOUCOS QUE SE LÊM MELHORES LIVROS.».



Maria Manuela Marques Pinto


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