Ao transpor a entrada da cidade e já noite escura, veio-me á lembrança o
último e tão longínquo dia em que, por ordem do meu pai, eu teria que ir embora
daquela cidade…
Naquela tarde de sol abrasador, eu caminhava pela rua de alcatrão carcomido
pelo tempo e pelos salpicos da água salgada que respingava da baia em horas de
maré-cheia.
O meu coração batia ao compasso dos meus pés no chão. Uma lágrima teimosa
aflorou ao canto de um dos meus olhos e escorreu lentamente pela minha face
Dobrei a esquina e ali estava em frente de mim, a rodoviária onde eu iria
comprar o bilhete do autocarro que no dia seguinte me levaria, para todo o
sempre, para longe de alguém que, tão fortemente, me prendia aquela cidade!
Os meus 16 aninhos eram uma mistura de ilusões e sonhos que se estavam a
desfazer, tal e qual como as leves ondas que embatiam de encontro ao muro que
ladeava a marginal.
Recordei a última noite naquela cidade, perdida no tempo, mas bem viva na
minha lembrança já que fora a última vez que estivera com os meus amiguinhos e
entre eles, aquele “alguém” tambem viera para se despedir de mim, mas
rapidamente voltei á realidade, pois acabávamos de sofrer mais um puxão do jipe
que era “chovado” pelo nosso.
Queria entrar na cidade de dia, para poder observar com olhos gulosos e
ávidos tudo o que durante anos revivera na minha imaginação, tudo o que deixara
há mais de três decadas!! Apesar de imaginar que muitas alterações deveriam ter
acontecido em diferentes partes da cidade, mas por um percalço e África tem
muito disso, a muitos quilómetros do nosso destino, encontramos quatro sul
africanos a quem não tivemos coragem de negar auxilio pois encontravam-se
imobilizados devido ao jipe ter avariado e sendo assim chegamos ao nosso
destino com algumas horas de atraso
O dia tinha sido o que poderíamos considerar um dia de calor tórrido, mas
aquela hora e devido á leve brisa vinda da baía, o ar apresentava-se levemente
morno, mas agradável. Apesar de nos sentirmos necessitadas de um bom banho e
sem muita fome, pois passamos horas a comer castanha de caju durante a longa
viagem. procuramos um restaurante e o melhor que nos indicaram foi o “Maçaroca”
Entre a nostalgia do passado e o primeiro contacto com a cidade que há
tantos anos deixara para trás, existia em mim um doce e inebriante prazer de
estar de volta, o cheiro característico que pairava no ar, esquecido por tantos
anos, rapidamente se instalou nas minhas narinas e me estava trazendo de volta
aquele tempo ….
Findo o jantar, empreendemos novamente viagem, desta vez com destino á
praia.
Noite a dentro e receosas do terreno que pisávamos pois a desconfiança era
nossa companheira, embora de alguma forma nos sentíssemos confiantes devido a
quem nos acompanhava ser típico habitante da terra e por isso conhecedor dos costumes
há muito por mim esquecidos
Finalmente e depois de, por breves minutos andarmos perdidos, nos deparamos
com um mini aglomerado de casinhas brancas entre palmeiras, coqueiros e outras
vegetações típicas da região.
Tudo era magico e a simplicidade reinante naquele lugar era como um lavar
de alma da civilização a que estávamos habituadas…
Acordei com o sol entrando pela janela de cortinas coloridas e entreabertas
e o meu primeiro impulso foi saltar da cama e ir receber aquela madrugada de
sol radioso que ás 5 e 30 da manhã já nos indicava que o dia iria ser quente.
O amanhecer em Africa é esplendoroso!!!
Tem outro encanto e características únicas...
Com uma caneca de café na mão, pois a meio do caminho do dia anterior,
tínhamo-nos abastecido de provisões suficientes para os dias da nossa estadia
na praia, saí de “babydoll” para a varanda, sentei-me num cadeirão de verga e
observei tudo o que a minha vista alcançava e, obviamente, o mar que em frente,
os coqueiros deixavam vislumbrar, despertou em mim a ânsia de correr para
aquelas águas calmas e quentes para me banhar, mas antes e sem sequer pensar no
pormenor que estava com 2 horas a mais de fuso horário, mandei algumas
mensagens…
A Lu juntou-se a mim e em pouco tempo estávamos a explorar o caminho rumo á
praia
Um extenso areal deserto, banhado pelas calmíssimas águas do Indico,
foi-nos apresentado pela mãe natureza
Largamos as mochilas e corremos para a água, como duas crianças felizes,
livres de preocupações, e de pensamentos receosos, pois continuávamos a pisar
terreno que não nos inspirava muita confiança, já que finda a guerra e já lá
iam muitos anos, as noticias que se ouviam não eram muito animadoras em
questões de segurança.
Naquele momento não existia a saudade do passado, nem a lembrança da
incerteza do futuro, apenas o presente e a vontade de tirarmos partido de todo
aquele paraíso só nosso...
Ao longe surgiu um nativo carregado de bijuterias artesanais, conchas,
capolanas e outros artigos que faziam as delicias dos turistas...
De má vontade, saímos da água e nos dirigimos para os nossos pertences, já
que o nativo se dirigia para nós, seguido de outros que entretanto surgiram
tambem.
Entramos em panico com receio de sermos atacadas.
Olhamos uma para a outra e nos interrogamos com os olhos, mas rapidamente
nos apercebemos do quanto aquela gente era pacifica e simplesmente tentavam
vender algo para assegurarem o próprio sustento.
Tive pena!!
Sobretudo de um menino de nome Fernando, que me dizia:
-Comprrra senhorra!!
E eu respondia:
-Não posso comprar tudo...Amanhã compro mais!!
E o Fernando insistia:
- Amanhã eu irrr na escola, não vai pode virrr aqui!
E logo outro se adientava e dizia:
-Comprrra a mim senhora, eu é irmão do Fernando...
E na ansia de todos quererem vender , guerreavam uns com os outros e esta
historia repetia-se todos os dias em que nos dirigiamos á praia.
Quando regressavamos á casa que nos acolheu, passavamos pelo mercado ao ar
livre ou debaixo das barraquinhas típicas onde se vendia de quase tudo um
pouco: Frutas tropicais, marisco ao preço da chuva, acabado de ser pescado,
legumes, águas engarrafadas, para despistarmos a cólera ou outro tipo de
doenças possiveis etc, etc.....
Tão afastada da realidade me sentia que, no dia, que voltamos á cidade,
poucos sitios, que outrora conhecera tão bem, conseguia localizar com precisão
na minha cabeça, apesar de me aperceber que muitas das coisas continuavam
iguais e no mesmo lucal. Sentia uma especie de turpor que não me deixava
destinguir a realidade dos sonhos que tantas vezes sonhara
Aquele miradouro em frente á baía a que dão o nome de Pergúla, símbolo das
minhas reflexões nos meus doces anos dourados, ali estava, igualzinho... deixei
o meu pensamento, por momentos, vaguear pelo meu passado tão longincuo e
lembrei de quantas vezes ali me refugiara, sempre com o meu pensamento voltado
para aquele alguém que naquela época e devido ao meu espirito romântico e
carente, era o meu principe encantado. Pensei naquela paixão, que eu tinha
vivido com toda a força do meu ser, de quantas lagrimas de desespero, eu havia
derramado por o ver ali passar e ele, sempre me ignorando...
Onde estaria?
Ainda visitei outras instalações que, de algum modo, me diziam muito, me
fizeram voltar ao passado e recordar com muita nostalgia os meus 16 aninhos que
jamais voltariam...
Quis ir aquela vilazinha, onde na minha pré adolescência tinha vivido e da
qual eu tinha maravilhosas lembranças e assim, por entre a savana, percorremos
vários quilômetros de estrada de terra vermelha e batida
Mau grado meu, deparei com uma terra desconhecida, onde não havia nada,
nada, do que tinha deixado!!!
A casa onde vivera nâo exista mais, as estradas, outrora, alcatroadas e
largas, eram agora, caminhos de cabras com grandes valas por onde passavam
rigueiros de água em épocas de chuva.
Passeios públicos?!! até Deus iria duvidar que algum dia tivessem
existido...
E...alguém um dia, havia gravado o meu nome num deles...fui, levada pela
curiosidade, á procura dessa recordação, mas havia-se esfumado juntamente com o
passeio público!
O Clube onde, tantas e tantas tardes de pura diversão ali havia passado,
esse ainda lá estava de pé, pintado de rosa, mas com poucas semelhansas do que
tinha sido. Aquela enorme piscina onde tinha passado espectaculares tardes de
lazer, era agora, apenas um tanque grande, seco e sem a mais pequena ideia de
se poder imaginar o que tería sido no passado
Outrora o soberbo jardim em fente ao Clube, estava agora, um campo de ervas
daninhas e rasas, em nada semelhante ao que fora nos anos 70
O hotel...meu Deus!!!
Deu-se ali um apocalipse e varreu quase tudo, depois... a vida foi
emergindo lentamente, mas de uma maneira pré-histórica
Quando fizemos a viagem de regresso eu sentia-me transtornada e
arrependidissima daquela visita.
Toda aquela tristeza foi compensada com um regalado almoço em casa da D.
Felicidade, com alimentos e frutas típicas.
Regressamos ao entardecer á nossa casinha da praia, onde não havia rádio,
tv, revistas, jornais, nada de nada, que nos ajudasse a passar o tempo, apenas
o silêncio daquelas noites tropicais, umas vezes quentes, outras ventosas, onde
os ramos das árvores batiam de encontro á janela do nosso quarto nos
assustando, mas em redor existiam outras casinhas ocupadas por sul africanos em
férias e isso acalmava os nossos temores
Quando tivemos que deixar aquele cantinho paradisíaco, já que a boleia que
nos havia levado estava de volta á capital e tínhamos que a aproveitar,
ficou-me um sabor agri-doce na boca, antevendo uma saudade que já existia mesmo
antes de a sentir. Tive a nítida certeza que meu coração se partiu em duas metades e uma delas ficou lá vagueando para todo o sempre, ou quem sabe!! á
espera que um dia volte para a recuperar...
Longo, mas longo caminho nos aguardava para a volta.
Atravessamos a cidade novamente e á medida que ela ia ficando para trás, eu
pensava que aquela brecha do tempo que se tinha aberto na minha vida para me
reencontrar com o passado estava se fechando novamente, porém, embora naquele
momento ainda não o soubesse, iría fechar-se muito lentamente, pois outras
grandes surpresas relacionadas com o meu passado, ainda me esperavam...
Celeste Vieira